sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Uma leitura....

Aidan, experimentaste uma vida que os teus irmão nem sequer conseguem começar a imaginar. Viste mais do que a mioria dos homens vêem em dez vidas. Foste ricamente abençado. (...) Por isso vou perguntar-te outra vez: que esperavas encontrar?
- Esperava que Deus honrasse a sua palavra - repliquei. - Pelo menos isso, mesmo que mais nada. Pensei que podia depender da verdade... mas descobri que não há verdade. Os inocentes são chacinados por todo o lado. Morrem enquanto imploram a Deus que os salve, mas a morte leva-os à mesma. Os guardiães da própria fé são mentirosos inconstantes e a Santa Igreja de Cristo é um ninho de víboras. (...)
- A vida é a escola do espírito, Aidan - entoou Ruadh com uma suave insistência. - A aprendizagem é uma necessidade da alma e o sofrimento é o mais persuasivo dos mestres.
- Oh, sim é uma escola... - concordei, sentindo a pulsante dor da futilidade. - É uma escola terrível em que aprendemtos lições muito duras e amargas. Começamos por ser confiantes e aprendemos que não há ninguém merecedor da nossa confiança. Aprendemos que a morte é a única certeza. Sim, todos nós morremos, a maior parte na agonia e no tormento, alguns na infelicidade e são muitos poucos, apenas os mais afortunados, os que morrem em paz, contudo, todos morremos. A morte é a resposta de Deus a todas as nossas orações.
- Não blasfemes, Aidan... - aconselhou-em Ruadh, com firmeza.
- Blasfemar! - exclamei, irado. - Porquê, se o que digo é o verdadeiro coração da verdade de Deus, irmão? Como pode ser uma blasfémia? Pomos a nossa confiança no Senhor Deus e concluímos que somos tolos por acreditarmos. Aguentámos a escravatura, a tortura e a morte e Deus não ergueu um dedos para nos salvar. (...)
Ruadh olhou-me com severidade e com a testa franzida de desaprovação.
- Também não fez nada quando o Seu amado filho morreu na cruz - salientou o meu anamcara. - Estamos mais perto de Cristo quando partilhamos as infelicidades do mundo. Pensas que Jesus veio para te remover o sofrimento? Onde foste buscar essa noção? O Senhor veio não para remover o nosso sofrimento mas para nos mostrar o caminho para lá dele, o caminho que nos pode levar à glória. Veio para nos dizer que podemos ultrapassar o nosso sofrimento. É essa a promessa da cruz.
- Uma promessa que vale tanto como o ar vazio - retorqui (...)
Ruadh ficou em silêncio durante algum tempo.
- Aidan, perdeste a tua fé? - acabou por perguntar.
- Não perdi a minha fé - grunhi. - Foi-me roubada. Deus abandonou-me!

(...)

Ah, mas todos temos que morrer e voltarei a vê-la no Céu, heya?
O desespero lançou a sua negra capa sobre mim e retorqui:
- Já viste que não é possível confiar neste Deus... e mesmo assim queres construir-lhe uma igreja? Ora, Gunnar, passarão melhor sem ela!
(...)
- Como podes falar desse modo, Aeddan, em particular depois de tudo o que viste?
- É precisamente por causa disso tudo o que vi que falo como falo - retorqui. - Deus não se rala connosco. Reza, se isso te fizer sentir melhor, pratica o bem, se isso te agradar... mas Deus permanecerá indiferente de uma maneira ou de outra.
Gunnar ficou calado durante um bocado, olhando para a nossa pequena capela de pedra.
- O povo da Escandinávia reza a muitos deuses, que não o escutam nem se preocupam - acabou por dizer. - Contudo, lembro-me do dia em que me falaste de Jesus, que foi viver com os pescadores e foi pregado numa árvore pelos skalds e pelos romanos, até morrer. Recordo-me de ter pensado: Este Deus Pendurado é diferente os outros. Este Deus também sofre, tal como o seu povo.
Também recordo que me disseste que era um deus de amor e não de vingança, pelo que quem quer que invoque o Seu nome se poderá juntar a Ele no seu grande salão de festas. Agora, perguntou-te: Odin fará isso para os que o adoram? Será que Thor sofre connosco?
- Essa é a grande glória da nossa fé - murmurei, pensando nas palavras que Ruadh me dissera, mas transformando-as de modo a reflectir os sentimentos de Gunnar. - Cristo sofre connosco e é através desse sofrimento que nos aproxima dele.
- Isso mesmo! - concordou Gunnar, entusiasmado. - És um home sábio, Aeddan. Sabia que compreenderias. Creio que isso é o mais importante.
- E achas isso reconfortante?
- Heya! - declarou. - Lembraste de quando o superintendente na mina nos ia matar? Lá estávamos nós, com os corpos quebrados, as peles enegrecidas pelo Sol... E o calor que fazia? Lembras-te?
- Claro, não é uma coisa que se esqueça com facilidade!
- Pois olha, eu estava a pensar no mesmo. Pensava: Vou morrer, mas Jesus também morreu e portanto sabe como me sinto. Também pensei: Será que me reconhecerá que eu for ter com Ele? Sim! Estará sentado no seu grande salão, ver-me-á navegar na baía e correrá ao meu encontro na costa. Entrará no mar, puxará o meu barco para a areia e irá receber-me como a um irmão que andou por longe. E porque o fará? Porque também ele sofreu e sabe, Aeddan, ele sabe.

(...)

...ouvi um eco da terrível admonição do bispo Cadoc: Toda a carne é erva.
Toda a gente tem de morrer, dissera Gunnar. Toda a carne é erva, dissera Cadoc. De que estás à espera Aidan?
Pensaste na verdade que Cristo embotaria as pontas das lanças, desviaria o chicote e derreteria os grilhões quando estes te tocassem na pele? Esperavas caminhar sob o Sol e não sentir o calor, ou marchar sem água e não ter sede? Pensaste que todo o ódio se transformaria num amor fraternal logo que aparecesses? Pensaste que as tempestades e as tormentas se acalmariam por causa da tonsura na tua cabeça?
Acreditaste que Deus te protegeria para sempre da mágoa e da dor deste mundo pejado de pecados? Pensaste que serias poupado às injustiças e às provações que os outros eram obrigados a suportar, que as doenças não te afligiriam e que viverias para sempre sem ser tocado pelas tribulações da humanidade comum?
Louco! Cristo sofreu todas essas coisas e muitas mais. Aidan, foste um cego. Contemplaste a verdade, olhaste-a durante muito tempo... mas nem sequer conseguiste compreender o mínimo relance de tudo o que te era mostrado. Sim, é esse o coração do grande mistério: o Deus fez-se homem e suportou o peso dos sofrimentos para que, no último dia, ninguém pudesse dizer. «Quem és tu para julgar o mundo? Que sabes tu de injustiças? Que sabes tu da tortura, da doença, da pobreza? Como te atreves a afirmar-te como um Deus bom e misericordioso? Que sabes tu da morte?»

Ele sabe, Aidan, ele sabe!

Gunnar, bárbaro inculto que era, discernira essa verdade central enquanto eu, não obstante toda a minha aprendizagem de monge, nunca a conseguira atingir. Em Gunnar, essa compreensão acendera a esperança e a fé enquanto a minha falta de compreensão me conduzira ao desespero.
Oh, mas com a chegada da madrugada do Dia da Ressurreição, a Santa Páscoa, a minha visão ganhara uma nova vida. Com a restauração do sonho, também eu ficara restaurado. Vira Bizâncio mais uma vez e soube que era lá que eu morreria. Contudo, desta vez não havia medo. Acreditava - porque sabia agora aquilo que lorde Sadiq dissera era verdade - que a certeza afastava o medo e que um homem prevenido com uma tal fé era um homem berdadeiramente livre.
(...)
Quando estes pronunciaram a oração do arrependimento pela primeira vez, também eu me arrependi da minha cegueira, das minhas dúvidas e dos meus medos. Deus não me esquecera, apoiara-me... até no meu desespero. Este pensamento tornou-me humilde e foi com um coração contrito que vi o abade erguer o cálice no altar e pensei: Kyrie eleison! Que o Senhor tenha piedade... Que Cristo tenha piedade!


LAWHEAD, Stephan in Bizâncio

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